sexta-feira, 30 de novembro de 2018

amar quando a palavra falta
em horda, errante, natureza de megalópole
que descamba neste bairro
tão infesto

mas a palavra morre 

ser uma das nove deusas do império do norte
quando, no riso, quebra-se o espelho
o espelho deste corpo
embaçado e sedento de metal

louvar neste instante o matadouro das verdades
que afugenta meu volume grave

reviver a décima deusa raspada pelos palimpsestos das cifras de cordas nunca aprendidas
para que Emily Dickinson morra em silêncio

vestir preto pela palavra transviada
amar a mim mesma com roupas de casa

terça-feira, 4 de setembro de 2018

tema para maluz

I
maluz, na foto, frequenta-me
como a noite cansada, cuja equação louca do tempo e da demanda é desviar de buracos enquanto se pensa
enquanto se tenta definir o que é ouvir marina lima cantando
lágrimas no escuro,
mágica do absurdo,
com aquele tom errado, meio bjork, meio anos 70, mas em 1984, atrasada e rouca
marina lima me importuna, me inquieta
tanto quanto os olhos de maluz e todo o vazio que ele eleva, de pretume e socorro

II
fiama hasse pais brandão é a mulher que nunca sorriu em foto, envolta no monalisiano aspecto
com esse ermo entorno de sisudez,
maluz faz a ela companhia,
que na boca travada diz poesia
mas nos olhos diz mais simples,
diz passar os dias, sem previsão de impaciência

escuto as conversas e os conselhos
mas fiama lê maluz e eu finalmente entendo
“até na íris dos olhos o tempo/ faz estalar faíscas de luz breve”

escuto os estalos:
o pretume vira prata por segundos

abraço todo esse incômodo que é viver
no escuro,
do absurdo
através da foto de maluz

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

mulher comum

I
M. acordou destinada a comprar ela mesma um pincel
“para pintar”, porventura pensaram
tal qual vocação descoberta tardiamente
pelo prazer do Ver
quiçá reproduzir


claro que não


II
M. concluiu que um bom verso é ver todo dia é um gato morto
quando desce à banguela o prolongamento da Prudente
estremecendo as vísceras de dentro,
voando o cheiro das que se mostram atropeladas,
e revivendo a compaixão pelo desencanto,


leva sua mão ao peito


III
M. agradece,
pois há quem recolha
cabelos, teias de aranha, fuligem, vísceras e gatos mortos
sem poesia, por ofício

como M. e o seu pincel
cuja maestria é
limpar melhor os ventiladores da casa

quinta-feira, 19 de abril de 2018

os olhos de adélia naquela ladeira

os olhos de adélia naquela ladeira
para adélia danielli.

era são joão perto do campus
adélia olhava com visgo pra frente
seu cigarro amarelando os dedos
(afronta ao meu moralismo raso)
no meio do escarcéu quadriculado de pessoas que sequer sabem de onde vinha todo o milho caro que enganavam os pós-modernos

há dias lembro de adélia sem que ela saiba
sem que eu não morra por não dizer a palavra

evito ler adélia, pois quero aquela lembrança
que me salvou da agorafobia
e me devolveu a pressão da artéria

ainda recorro à adélia na multidão
para encontrar a calma
amarela e preta
três anos depois

adélia: matéria de sal
sob a língua

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

cont. sumidouro

V)
sei dos pormenores de estar só:
a energia elétrica nas tomadas da casa fazem pequenos ruídos
nunca há o silêncio


hoje o ouvido pulsa um batimento independente
do coração
expressão máxima da dura-máter, cabeça concreto, cansaço míope,
nome essencial


estar só é deitar, ouvir o ruído solar,
(o dia é pior do que a noite)
feito toda uma Guernica devastada
em descanso profundo de pernas e
linguagens


sei do prazer de estar só
e isso basta para não abrir a portinha
aos 50 anos

cont. sumidouro

IV)
há um vulcão tão grande quanto H.
que tenta acompanhar
na violência do não-ciúme
como o pouso incessante das moscas onde não deveriam
nas troças escondidas:
toda uma munição roubada
e os tiros pra cima que voltam


porque H. é gigante quando fecha os olhos
quando se torna esse semelhante
quando dança na cozinha


quando trabalha
para amenizar os traumas dessa massa pesada
também
e escuta, dorme, morre, acorda, descansa, tatua


desvela-se em maciez,
vê a terra e o monte de Vênus
e contém o fogo dentro:


cratera inflama nua

cont. sumidouro

III)
está acontecendo novamente
dentro deste ônibus
à noite
na iminência de toda uma vida


desponta comigo o sorriso maligno de uma lua amarela
anunciando a descida de cada viajante
e eu por último


com fome e por último
com medo e por último
com uma lua que canta sem melodia,
mas não fala:


“fire walk with me”

cont. sumidouro

II)
encostada à parede,
a garrafa de vidro que guarda as plantas compridas
e artificiais
noutros tempos explodiu em gás
bolhas, demi-seco, rosé
matiz:

a vida da mulher
promessa de estouros passados
sufocada como semente ou lava
d’um vulcão-juíz

sumidouro

I)
vulcão cor-de-rosa, o macho
tem a mesma cor
da terra batida no solstício de primavera
pr’onde olhei da janela de um ônibus
na estrada de piche antigo

lembra-me ele que a semente dessa terra batida aguarda
mais do que os velhos por serem lembrados

(a semente aguarda sufocada de vento e poeira
protegida do visível,
vive)

as lembranças são sempre as mesmas dos desertos que nunca fui
e dos que sempre retorno

portanto, de pensar,
seridó, oeste ou licancabur,
eis-me lá